Ressurreição como astralização e a promessa abraâmica

A natureza do corpo ressuscitado à luz da apocalíptica do Judaísmo do Segundo Templo

LUCAS
6 min read4 days ago

A gente costuma ler a promessa “sua descendência será como as estrelas do céu” como uma promessa de crescimento numérico da descendência física de Abraão, e boa parte do AT (e algumas do NT) parecem entender assim. Mas Fílon de Alexandria entendeu de forma diferente, e existem boas razões para pensarmos que Paulo compartilhava essa visão.

Em 1Co 15,35–49, Paulo compara diferentes tipos de corpos, e ambos os tipos de corpos são adequados para diferentes habitats e diferem na natureza. A questão é que a lista de seres que Paulo enumera não provém de Gênesis 1, mas de Deuteronômio 4,15–19, que em várias fontes judaicas funcionava como um “modelo” para descrever a natureza do cosmos, construído e administrado por Deus, e onde os corpos celestes aparecem como delegados divinos ou angélicos na “polis” cósmica de Deus. Assim, ao listar os corpos dos astros, ele está na verdade tratando da natureza dos seres celestiais, dizendo que a “carne” deles, ou seus “corpos”, são diferentes e adequados para o habitat escatológico, adaptação que Cristo, Segundo Adão, tem, e em quem os santos experimentarão a mesma astralização, e tomarão o poder cósmico no lugar desses poderes celestiais inimigos de Cristo.Algumas considerações podem ser feitas sobre isso:

  1. 1Co 15,35–49 segue a sequência de Dt 4,15–19 LXX, omitindo apenas os “répteis” (mas Gn os menciona também). Fora disso, Paulo segue a mesma estrutura, a mesma divisão, e usa os termos praticamente iguais. Os astros são incluídos na lista de seres que não devem ser adorados.
  2. A Bíblia Hebraica comumente descreve os astros como seres celestiais ou angélicos, como corte divina. Dt 17,3 fala da “adoração dos deuses” como adoração aos astros, e Jr 8,2 indica um uso intercambiável de “exércitos do céu” e “estrelas”.
  3. Deuteronômio Dt 29,18[17].26[25] LXX faz uma associação desses deuses das nações com a ideia de atribuição. O Cântico de Moisés (Dt 32,8–9 LXX) faz essa associação de maneira mais clara. O uso da mesma expressão em Gênesis 11,8–9 LXX e Dt 32,8 LXX (“separou” (διέσπειρεν) os filhos de Adão) indicam que se trata da mesma história aqui.

Ou seja, os corpos celestes são descritos como os deuses ou anjos que receberam de Deus o poder para governarem todos os “filhos de Adão”, ou “todas as nações debaixo do céu”, enquanto o povo de Yahweh, Israel, é sua “herança” (κληρονομίας), assim em um verdadeiro sentido separando-os dos “filhos de Adão” e elevando-os ao nível de ‘filhos de Deus’. Tal poderia ser interpretado como sendo colocado, pelo menos relacionamente, em pé de igualdade com os deuses ou anjos. Dentro da matriz deuteronômica mais ampla em relação aos corpos celestes, tanto a eleição de Israel quanto o êxodo são narrados como uma saída do domínio dos deuses/anjos celestiais das nações para participar da “herança’”de Yahweh, o Deus Altíssimo.

Fílon de Alexandria parece ter acreditado ema algo parecido. Ele usou Dt 4 para dizer que os astros são governantes subordinados a Deus: cocheiros, que conduzem a carruagem, e interferem no mundo para administrá-lo como delegados de Deus, no cosmos, a maior de todas as polis, onde os seres cósmicos governam, e os abaixo dos céus são súditos, mas os tais não são seres onipotentes e de poder irrestrito; por isso, não devem ser adorados. Fílon não nega a divindade dos corpos celestes, mas em seu uso de Dt 4:19, a lógica dada contra a idolatria é simplesmente que eles não são deuses com “poderes absolutos’” mas são governantes designados sob um Deus que é ‘Pai de todos’. Sirácida 17 conecta a criação do mundo com a “partilha” das nações, como ato criacional de Deus ao criar Israel, “sua porção”.

O Salmo 81 LXX também é relevante. Nele, Deus julga os deuses por não terem julgado justamente, e os julga fazendo com que percam seu poder e “morram”. Então, Deus “toma a herança das nações”, ou seja, revoga a distribuição dos povos.

Em Qumran, o 11Q13 (11QMelch) enxerga uma figura mediadora na execução desse julgamento: é Melquisedeque quem julga os deuses conforme anunciado no Sl 81,1.

Daniel também conhece um conflito entre os “príncipes” das nações que é interpretado em 11QMelch 2.9–13 como um conflito celestial específico. Em Daniel 12, Miguel, “se levantará” (ἀναστήσεται, Dan 12:1 LXX, Theodotion) vitorioso sobre os “governantes” celestiais das nações contra as quais ele lutou anteriormente (cf. Dan 10:13, 20–21; Sl 81[82]), seguido pela ressurreição dos justos que “ brilhar (ἐκλάμψουσιν) como o brilho do firmamento” e “como as estrelas (ἀστέρες) para todo o sempre”. De acordo com John J. Collins, os ressuscitados são assim associados aos anjos como em Dn 8:10 onde as “estrelas” são identificadas com as “exércitos do céu” (cf. Dt 4:19). Finalmente, Sirácida 3,1.5b-8 anuncia que os justos resplandecerão como astros e serão senhores e governantes das nações, sob o governo de Deus.

Parece haver, portanto, o suficiente para ler o ensino de Paulo em 1Coríntios 15 como parte da história de recepção de Deuteronômio 4 no Judaísmo da época. Em primeiro lugar, a matriz deuteronômica enquadra toda a unidade discursiva de 8,1–11,1 abordando idolatria e comendo alimentos sacrificados aos ídolos. Paulo começa sua polêmica contra a idolatria em 1 Coríntios 8,4–6 baseando-se em Deuteronômio 4–6. Paulo ecoa Deuteronômio, particularmente extraído do Shemá (Dt 6:4) e Dt 4:35, 39: “não há outro além dele ” (καὶ οὐκ ἔστιν ἔτι πλὴν αὐτοῦ). O contexto dessa declaração é a afirmação de que não há deus semelhante a Javé, que criou o mundo e tomou uma nação para si, conectando criação e eleição. Além disso, na confissão paulina, admite-se a existência de múltiplos deuses, embora se faça uma distinção entre eles e “Deus”, e Cristo. A referência ao batismo no cap. 10 parece seguir a mesma linha: eles experimentaram o êxodo pelo batismo, portanto, devem fugir da idolatria também, libertos que foram. Essa libertação é um veto à comunhão com os deuses pagãos, “demônios”. Finalmente, Paulo declara que os coríntios eram conduzidos pelos falsos deuses “quando eram gentios”, o que havia mudado, e agora só confessavam a Cristo. O enquadramento geral é muito análogo aqui.

Especificamente no capítulo 15, sempre que Paulo realmente emprega o termo “a ressurreição (ἀνάστασις) dos mortos”, é sempre um substantivo e é usado apenas quatro vezes (15:12, 13, 21, 42), sempre denotando o evento escatológico apocalíptico em sua totalidade. O termo funciona como uma designação para o episódio cósmico culminante (15:21, no início de 15:20–28), e é justaposto com a entrada cósmica da morte. O termo também aparece apenas uma vez na discussão de Paulo sobre a natureza do corpo da ressurreição (15:42 no meio de 15:35–49). Sempre que Paulo quer falar especificamente sobre o que Deus faz pelos mortos no evento, ele usa o verbo ἐγείρω, “levantar”, que é o termo mais comumente empregado ao longo do capítulo (18 vezes). Embora este verbo certamente capte o que acontece com os corpos dos mortos — uma característica central associada ao evento escatológico — ele não explica tudo o que Paulo vê acontecendo dentro do evento que ele chama de “ressurreição”. Para ele, isso inclui a destruição dos deuses/governantes e o julgamento divino e herança do cosmos ou reino de Deus (por exemplo, 1Co 6:2–3; 15:24, 50; cf. Rm 4:13). Isso segue um padrão proeminente na recepção da matriz deuteronômica na literatura apocalíptica judaica primitiva. governante celestial e sua “herança atribuída”, como em Dt 32:6–9, explicando a linguagem de “entregar o reino a ele” (1Co 15:24), cumprindo assim o apelo do salmista no Sl 81[82],8. Paulo faz uma associação com Sl 110, assim como Qumran associa, na figura de Melquisedeque, o julgamento do Salmo 81[82] com a figura exaltada no Salmo 110: a figura do salmo é o mesmo “deus” do Sl que executará o julgamento contra “Belial e da mão de todos os espíritos da sua sorte”. Assim, Cristo está fazendo o caminho contrário: reparando a divisão e dominação dos principados e potestades até que finalmente vença o último inimigo, a morte.

Essa é apenas mais uma das várias nuances que uma abordagem conscientemente apocalíptica de Paulo pode revelar em seus textos: Paulo leu o “sereis como as estrelas dos céus” como uma afirmação sobre a natureza gloriosa dos ressuscitados, corpos celestiais e poderosos como os dos seres celestiais, e que por isso a descendência de Abraão seria “herdeira do mundo” e senhora das nações, como eram os anjos.

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LUCAS

História, teologia, vida e o que mais me vier à cabeça.